O frisson tecnológico dos tempos atuais desencadeou um movimento chamado "quantified-self", que acredita (ou nos faz acreditar) que o auto-monitoramento através de números, gadgets e ferramentas digitais levam a uma vida melhor.
Parte desse movimento, os chamados menstruapps são aplicativos de acompanhamento do ciclo menstrual que prometem ajudar a prever a próxima menstruação, planejar ou evitar a gravidez e entender melhor o deus nos acuda dos ciclos que mistura pele, cabelo, humor, apetite e disposição.
Legal, né? Mas enquanto a gente se ilude pensando que esse ~acompanhamento personalizado~ é mais um passo na linha de sucessão da nossa emancipação seguindo o bonde dos absorventes descartáveis e das pílulas anticoncepcionais (opa, essas também se viraram contra nós 🤔), os menstruapps coletam e armazenam nossos dados físicos, sexuais, comportamentais e emocionais em sistemas de segurança incomprovada, com acesso de pessoas não autorizadas. Essas informações também não são criptografadas e nem cobertas por nenhuma lei de confidencialidade médica, é claro, e os aplicativos que as coletam têm como modelo de negócio a venda de dados para marketing direcionado! <3
Muitos autores falam hoje do "trabalho não remunerado" que a sociedade faz ao alimentar de conteúdo as redes sociais. A pesquisadora Paula Sibília fala da commoditização da criatividade; o Share.Lab compara o Facebook a uma antiga fábrica onde os algorítmos trabalham para processar a matéria prima produzida gratuitamente por nós.
De trabalho não remunerado as mulheres entendem bem e os menstruapps trazem um requinte de crueldade para essa lógica ao reeditar a desvalorização do trabalho reprodutivo e afetivo das mulheres em pleno século XXI.
No artigo "Menstruapps - como transformar sua menstruação em dinheiro (para os outros)?" Natasha Felizi e Joana Varon contam essa história e analisam termos de uso, política de privacidade, estratégia de marketing e modelo de negócio de alguns desses aplicativos.
Com cerca de 3 milhões de usuárias, o Glow tem o modelo de negócios mais assustador. Seu "ecossistema" é composto de 4 aplicativos que acompanham desde o ciclo menstrual até o desenvolvimento do bebê.A política de privacidade do Glow diz que a empresa pode decidir compartilhar as informações coletadas pelos aplicativos com terceiros. Elas podem ser utilizadas tanto para a execução dos serviços que o aplicativo oferece, quanto para indicar produtos e serviços que consideram do nosso interesse.
Criado na Índia, o app diz ter 6 milhões de usuárias. A versão gratuita do aplicativo se financia com as propagandas e te obriga a criar uma conta. Ao instalá-lo, você pode dar permissões meio estranhas para que ele acesse sua localização, calendário e impeça seu celular de entrar no modo inativo. Não há uma política de privacidade específica para o aplicativo, apenas termos de usos genéricos da Plackal, a empresa desenvolvedora. Existe uma versão paga sem propagandas.
Desenvolvido em Hong Kong e mal-traduzido para mais de 30 idiomas, tem 50 milhões de downloads na playstore. O aplicativo calcula as chances de engravidar diariamente, além de prometer ajudar a manter a forma. O app pede acesso às contas no seu dispositivo, fotos, mídias, arquivos, controle de vibração e acesso completo às conexões de rede e a política de privacidade é bem curta e genérica. Os anúncios são feitos via Facebook ads, que oferece propagandas “relevantes”, ou seja, baseadas nos seus históricos de navegação.
Sob a promessa de ser “lindamente científico”, tem cerca de 5 milhões de downloads nas app stores. Criado na Alemanha, esse aplicativo parece acima da média no quesito privacidade. Caso optemos por criar uma conta, e concordemos em compartilhar os dados, a informação será enviada anonimizada para fins de pesquisa clínica e acadêmica. Os dados pessoais são armazenados separadamente dos dados dos ciclos e protegidos por criptografia.A interface é livre de anúncios e a empresa tem se financiado via mercado financeiro, por investimentos de capital de risco. Eles utilizam cookies, inclusive do Google Analytics, para medir acessos na plataforma.